terça-feira, 8 de janeiro de 2008

relato de vôo



Dez da manhã e estávamos no pé do morro.Queria um termômetro pra saber a temperatura, nunca senti o sol arder tanto. Uma camada generosa de filtro solar em todo pedaço do corpo exposto, boné na cabeça, camelback nas costas, muito ânimo e hora de encarar a subida.
De todas as vezes que subi o morro essa foi a mais penosa. Subir no fim da tarde pra ver o pôr-do-sol é mais fácil, agora, com sol a pino é mesmo de matar. As pedras parecem maiores e mais altas, cansa em dobro e a subida fica mais ‘ingridi’,como diria nosso amigo Aldemar. O morro tem só 210 metros de altura, debaixo desse sol e com essas pedras parecem 400.
Já estava quase perdendo as pernas quando fizemos nossa parada merecida. Sentamos numa sombra onde a vista já recompensa. Enquanto todas as minhas sensações - cansaço, sede, náusea e fome - me sacudiam de uma só vez, os guris se divertiam observando alguns voadores que dominam o céu por aquelas bandas:
_ Tá vendo aqueles caras ali?
_ Os da esquerda ou da direita?
_ Os que estão na base daquela nuvem ali. Olha só que enroscada!
_ É... tão subindo tudo que dá...


Fiquei procurando 'os caras' até cansar o pescoço, sentindo minha nuca esturricada (putz! esqueci desse pedaço). Bem, olhei, olhei e não achei nada, só uns passarinhos lá em cima.
Ok. Tomo água, fôlego, e o Arthur me puxa:
_ Bora amor, agora tem menos da metade.

Os passos estão lentos e fico pensando: que animação! Como a galera aqui gosta de diversificar, sempre buscando o melhor vento ou um vôo diferente não importando onde. Tudo pelo prazer e pela técnica. Nada de preguiça.
Topo do morro finalmente, tudo parado e - como diria nosso amigo Aldemar - ‘jarrada’ de vento que é bom, nada! Putz de novo! Escalar e morrer no morro?
NÃO! Não para o super-super Fernandes Falcon, o urubu mais cheio de ciência dessas paragens! Tan dannnnnnnn...
Aqui não, hein! Esse tira vento de pedra. E foi o que se deu. Asa aberta, equipamento em ordem, todo mundo conectado e...
_ Agora vai, agora vai... Ai meu Deus! Cadê esse vento? ... agora vai, agora vai... Pô!tá feio hein? ... É agora, é agora! Arthur, gruda aí. Vocês dois, dá pra fazer um varal?
_ Olha aqueles caras ali enroscando numa térmica. Acho que a bufa dela passa aqui.

De novo os tais 'caras'. Olho pra todo lado e nada. Dou três piscadas pra desembaçar e só mesmo passarinho lá em cima.

Tá chegando a hora.
_Seguinte Ângela: quando eu falar ‘vai’, começa a correr e não pára.
_Ok!


Eu estava tranqüila. Não sei por que, não sinto medo nenhum, confio no piloto e ao primeiro comando me atiro montanha abaixo. E foi assim mesmo.
_Corre, corre, corre, corre...
Pernas pra que te quero, saí correndo e fazendo força pra ajudar a arrastar a asa o que dava e inflar. Uhuuuuuuuuuuuuuuuu!!!!!
Quando me dei conta já estávamos voando e eu ainda pedalando no ar. Ops!


Que sensação! Vento na cara, ar de sobra pros pulmões, paisagem até onde os olhos alcançam, o mundo lá embaixo. Já sei como os pássaros se sentem. O vôo livre é mágico. Ficava olhando tudo aquilo, o céu ‘quase’ ao alcance, a paisagem toda cabendo no angulo da minha mão e já pensando na próxima vez que poderia fazer isso de novo. Lugar perfeito pra uma poesia, nem precisa de palavras. Abro a boca o quanto dá e engulo uma porção de vento, quero digeri-lo pro resto da vida. Olhei o pessoal que tinha ficado no morro, vejo o Arthur decolando e... ih! Acho que vai pregar. Pregou! (hehe)
Conseguimos uma térmica. A ordem era jogar todo o peso do corpo pra direita e assim conseguir enroscar, girar e subir. Subimos 1.167 pra cima da rampa, se o vento colaborasse chegaríamos mais alto. Mas chegamos aqui por pura peripécia do piloto mesmo, porque o dia não estava fácil. Fizemos metade do caminho pra cidade de Santo Antonio de Leverger. Lá em baixo muitas chácaras e piscinas. Tchauzinho pra galera do solo. Começamos a perder altura, o Fernandes escolheu um bom lugar pro pouso e pronto. Pé no chão de novo e nem dava pra acreditar que o meu solo, a uns segundos atrás, era feito de brisa. Pousamos no pasto de uma fazenda e o nosso resgate chegou junto. Por último, uma chuva de recompensa. De co-piloto pra piloto: Valeu, hein! Parabéns!

Foram 44 minutos em outra dimensão. Impossível passar por uma experiência como essa e não olhar para a vida de outra maneira. Queria que todos os meus amigos pudessem ter pelo menos um dia de pássaro nessa existência.
Sentir-se livre no céu, de peito aberto pro espaço é uma sensação insubstituível.
Ah! Sobre os tais caras? É que urubu aqui é gente. E se chamar um piloto de ‘urubuzão’... Nossa! mó elogio.